Que a paz de Oxalá esteja com todos
Irmãos hoje falamos do maior pai de santo da Umbanda, sem dúvida um exemplo, nosso querido Pai Jaú.
"Um apelido como qualquer outro" era a resposta que Euclides Barbosa dava quando lhe perguntavam de onde ou do que havia surgido o apelido Jaú.
Evitava falar de sua vida e das mulheres que sempre povoaram sua existência de alegrias e muitos dissabores. Apenas dizia que, como filho de Ogum, estava seguindo à risca os ensinamentos de seu pai.
De fato, o cidadão Euclides Barbosa, que ficou conhecido como Jaú, sempre foi um líder, desbravando territórios que ainda não haviam sido tocados por nenhum outro brasileiro.
Sua espiritualidade, como a de todos os seres que são contemplados com este tipo de missão, surgiu nos primeiros anos de sua vida, mas a visita a algumas benzedeiras da época retardou a explosão espiritual, que se deu após encerrar sua brilhante carreira como jogador de futebol.
"Sou uma pessoa que tem três pesos e três medidas: sou da raça negra, umbandista e corintiano."
Sábias palavras de quem tinha um parco conhecimento das letras, mas um infinito instinto de sobrevivência e de garra para não se deixar derrubar por nada neste mundo.
Suas façanhas no futebol foram cantadas em versos e prosa; a mais conhecida foi um jogo de vida e morte do "Coringão".
Jaú, em uma dividida de bola, acabou tendo um ferimento grave na cabeça. Sua presença era essencial para que o time conseguisse vencer o adversário.
Foi nesse instante que recebeu, pela primeira vez, uma mensagem espiritual, e a levou a sério.
Jaú estava deitado na maca, fora das linhas do campo, o médico dizendo ao técnico que ele não poderia voltar ao jogo, pois o sangue não parava de jorrar e, provavelmente, ele havia sofrido uma concusão cerebral; somente um milagre faria com que ele se levantasse. Quando olharam para o lado, Jaú estava de joelhos, olhando para o infinito, como se estivesse ouvindo instruções, e passou a mão no gramado, arrancou um chumaço de grama, colocou no ferimento, e, ainda seguindo as instruções, enfaixou a cabeça. Depois, solenemente encostou a testa na terra e levantou-se, como que impulsionado por uma mola, entrando vitorioso no campo, sob os aplausos da torcida e a perplexidade do médico e do técnico.
Mais tarde, este gesto de tocar o solo do gramado com a testa passou a ser marca registrada do grande jogador e tinha tanta influência entre os colegas que ninguém se atrevia a colocar os pés no gramado sem que houvesse o toque da sorte, como passou a ser conhecido.
Quando Jaú pendurou as chuteiras e passou a dedicar-se inteiramente à sua missão religiosa, teve realmente de ter o mesmo espírito de luta que sempre lhe acompanhou nas disputas esportivas.
Sua religião era mais discriminada do que ser da raça negra ou então ser corintiano.
Mesmo sem jogar, continuou fazendo, no Pacaembu, toda a vez que o timão fosse jogar, suas "mandingas" no campo para dar sorte aos jogadores.
O radialista Estevam Sangirardi imortalizou a figura de Jaú nos programas que eram apresentados após cada jogo e ninguém reclamava, pois realmente era uma homenagem merecida ao grande guerreiro.
Na religião, não teve tanto reconhecimento, ao contrário, foi o mais discriminado, o mais criticado e o mais perseguido pela polícia, que juntava a bronca de Jaú ter sido grande jogador corintiano com o fato de sua magia ainda ajudar nas grandes partidas.
Foi preso diversas vezes, sob alegação de estar praticando feitiçarias. Passou por muitas torturas, como ficar horas ajoelhado no milho; dias e noites sem comer, recebendo apenas goles de água. "Se ele recebe mesmo espíritos, não precisa comer nem beber", satirizavam os carrascos. Por fim, acabavam libertando-o, pois os filhos-de-santo se aglomeravam defronte à delegacia e, cantando pontos de Umbanda, pediam a libertação de Pai Jaú.
Uma das torturas mais cruéis ocorreu quando o Timão estava disputando uma final e Pai Jaú, ao acabar de fazer sua mandinga de sorte, disse ao técnico que o zagueiro deveria ficar mais solto, pois o gol da vitória estaria em seus pés. Não deu outra e o Timão foi campeão daquele ano. Não mencionaremos o nome do time adversário para não causar constrangimento, pois temos certeza de que o ato praticado por alguns indivíduos não era a vontade de todos os torcedores.
A noite, Pai Jaú estava fazendo seu trabalho espiritual, quando seu pequeno terreiro foi invadido por policiais, que alegaram ter recebido uma denúncia de que no local estavam promovendo uma orgia pela vitória do Timão. Pai Jaú foi arrastado para o camburão e levado para a delegacia, não na mesma de sempre, o que dificultou aos filhos localizarem prontamente e pedirem sua soltura.
Até que fosse encontrado, na noite seguinte, Pai Jaú passou pela humilhação de ficar no "pau-de-arara", levando choques e foi jogado entre marginais de outros times, que o espancaram.
Não satisfeitos, os policiais separaram dez palitos de fósforo, fizeram pontas bem finas e enfiaram, bem devagarzinho, entre as unhas das mãos de Pai Jaú, que nesse momento invocou a proteção do Sr. Ogum.
Foi atendido; quando os carrascos acenderam os palitos, ele começou a ver, nas chamas, uma espécie de luz, formando uma figura de índio. De seus olhos escorreram lágrimas, não de dor e sim de pena daqueles sujeitos que acharam que estavam lhe fazendo um grande mal. Estavam lhe proporcionando passar por um grande milagre espiritual.
Os policiais foram afastados a bem do serviço e nunca mais Pai Jaú foi perseguido pela polícia.
Até os 82 anos, idade em que faleceu, Pai Jaú atendia pessoas todas as quartas-feiras. Todos admiravam seu caboclo, pois sempre vinha do mesmo jeito, independente da idade ou da saúde do velho guerreiro. Na incorporação, seu corpo estirado se elevava mais de um metro do chão e, ao tocar no solo, o caboclo batia a cabeça no chão, no gesto característico do grande Decano.
Como já aconteceu com muitos sacerdotes, por não deixar por escrito sua vontade, após sua morte, no que diz respeito a cerimônia e legados, Pai Jaú sofreu a discriminação e o desrespeito. Seus filhos-de-santo não puderam fazer nada, pois a família, com exceção de seu filho Jair, que nunca havia participado de sua vida, proibiu qualquer cerimonial umbandista e, no dia seguinte ao enterro, sua filha evangélica desmontou o congá, jogou tudo na rua e colocou fogo, sob os olhos atônitos dos vizinhos, que não puderam ou não quiseram interferir.
Terminava assim a trajetória de um homem que honrou seu tempo, seus amigos e seus filhos espirituais, mas que recebeu muito pouco ou quase nada em troca, a não ser sua própria luz na eternidade.
Que Oxalá nos abençoe sempre
Saravá .'.